Está provado e publicado nas mídias digitais e não digitais que o maior banco de investimento do mundo, o Goldman Sachs, atraiu cidadãos para uma armadilha na véspera do estouro da bolha imobiliária americana em 2008, inflada por uma plêiade de instituições respeitáveis e outras nem tanto. A sucessão interminável de episódios vergonhosos inscritos na crônica da crise das hipotecas subprime mostra não se tratar de uma exceção este caso do Goldman Sachs, escancarado há uma semana pela Securities and Exchange Comission, órgão do governo americano que fiscaliza o mercado de capitais.
A repetição do roubo tosco e do roubo refinado, em grandes proporções, nas crises do capitalismo protagonizadas por bancos, fundos de investimento, corretoras, seguradoras, avaliadoras de risco e auditorias aponta para uma outra questão: é possível imaginar o sistema financeiro atual sem jogatina e sem trapaça?
Não, não é possível, já disse o banqueiro Ernest Cassel, gestor da fortuna do rei Eduardo VII, rei da Grã-Bretanha e da Irlanda entre o final do século 19 e o início do século 20. Homem culto e conhecedor profundo dos meandros da economia e das finanças, Cassel afirmou não haver fronteiras entre atividade financeira e jogatina.
Especulação elevada caracteriza 40 crises financeiras de proporções consideráveis ocorridas nos últimos 50 anos, constataram quatro pesquisadores em um estudo sobre características recorrentes nos colapsos econômico financeiros. Em 1923, um operador da bolsa de Nova York disse: "em parte nenhuma a história se compraz em repetições com tanta freqüência e uniformidade quanto em Wall Street. Quando lemos relatos contemporâneos sobre surtos altistas ou pânicos, o que mais nos impressiona é que a especulação ou os especuladores do mercado acionário de hoje diferem pouquíssimo dos de ontem. O jogo não muda, como também não muda a natureza humana".
O problema tem impacto sísmico no contexto contemporâneo, de poder e abrangência hiperdimensionadas do sistema e da lógica financeira sobre todas as esferas de vida. Esse poder e essa abrangência ficam claros quando se examina o avanço do segmento sobre as demais atividades econômicas. No período que antecedeu a crise das hipotecas subprime, os lucros do segmento financeiro dobraram em relação ao final da década de 1980 e representaram trinta por cento do total obtido pelo conjunto das empresas americanas, como lembrou há uma semana o economista Paul Krugman.
O sistema justificava a sua hipertrofia e o gigantismo dos lucros dizendo que cumpria um papel de equilíbrio econômico e social ao distribuir recursos com eficiência para usos produtivos, diluir riscos, ampliar a estabilidade e perenizá-la através da inovação constante. O que se viu, lembra Krugman em coro com legiões de economistas tornados mais lúcidos e mais críticos a partir da débâcle, foi o sistema financeiro canalizar recursos para empresas não inovadoras nem geradoras de emprego, aumentar a instabilidade econômica e social, concentrar o risco e multiplicá-lo com o emprego de inovações que eram puro "lixo tóxico".
O dia-a-dia do sistema financeiro americano e europeu, principalmente, passou a girar em torno da lógica de apostas cada vez mais altas com dinheiro alheio, até a banca quebrar. Nada de novo a banca financeira mostrar-se banca de jogo, diria Ernest Cassel, fosse ele contemporâneo da segunda maior crise da história do capitalismo.
Na América
Na América
No episódio do Goldman Sachs ocorrido no ápice da bolha imobiliária, sobrava cinismo ou excesso de confiança. Em e-mails revelados no final da semana pelo Congresso americano, executivos do banco comemoraram os ganhos de um bilhão de dólares com a atração de investidores para apostas na continuidade do ciclo de ganhos do mercado enquanto a própria instituição colocava dinheiro grosso em operações que presumiam a hipótese contrária, isto é, de estouro da bolha.
Em janeiro deste ano Lloyd Craig Blankfein, presidente da Goldman Sachs, prestou depoimento sobre o mesmo escândalo na Financial Crisis Inquiry Commission, comissão bipartidária criada pelo presidente Barak Obama para investigar as causas da crise das hipotecas subprime. Interpelado pelo senador Phil Angelides, presidente da FCIC, Blankfein alegou que a Goldman "é apenas um participante de mercado e pode ser uma vencedora ou uma perdedora após cada operação".
Caso GregoPara Angelides, as ações de Blankfein no mercado de hipotecas são comparáveis a vender um automóvel sem freios e então comprar uma apólice de seguro do veículo. A lista de episódios de falta de lisura do Goldman Sachs é longa e inclui um episódio recente. Ao lado de outros bancos, ajudou o governo da Grécia a mascarar a verdadeira extensão do seu déficit, com o uso de derivativos, para contornar os limites de déficit aceitos para países integrantes da União Europeia. Os gestores da dívida da Grécia fecharam negócio com o Goldman Sachs em 2002.
A operação envolveu os chamados cross-currency swaps, nos quais a dívida do governo emitida em dólares e yens é trocada por uma dívida em euros para ser reconvertida nas moedas originais depois de um certo prazo. Diversos países europeus obtém normalmente fundos de investidores ao redor do mundo com esse tipo de operação. Mas no caso da Grécia, observou a revista alemã Der Spiegel, o Goldman Sachs e outros bancos americanos inventaram um tipo especial de swap com "taxas de câmbio ficcionais".
A inovação possibilitou que a Grécia recebesse "uma soma muito mais alta do que o valor efetivo no euromercado, de dez bilhões de dólares ou yens". Por meio desse expediente, o Goldman Sachs conseguiu secretamente um crédito adicional superior a um bilhão de dólares para a Grécia. Esse crédito, disfarçado como swap, não aparece nas estatísticas de endividamento do país.
As regras de Maastricht, definidas pelos países da União Européia, puderam ser tranquilamente contornadas dentro da lei através desse tipo de swap. Este tipo de operação, considerado uma inovação brilhante pelos donos de Wall Street, nada tem de novo, no entanto, no seu princípio de trapaça denunciado de forma tão clara pelo banqueiro Cassel.